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Fonte: Nova Escola |
Mostrar a importância de respeitar as diferenças é uma lição que deve ser ensinada desde os primeiros anos de escolaridade
Preconceito, está no dicionário, é "qualquer opinião ou sentimento, favorável ou desfavorável, concebido sem exame crítico, conhecimento ou razão". Portanto, é coisa pensada, raciocínio elaborado, restrito aos adultos, certo? Errado. Nem as crianças pequenas estão imunes às múltiplas formas de discriminação.
Acompanhe o que a professora Rita de Cássia Silva Santos vivenciou no Centro Municipal de Educação Infantil Creche Vovô Zezinho, em Salvador. Certo dia, ela trouxe para a sala de aula bonecos com vários tons de pele e fotos com pessoas de características físicas distintas. Uma das crianças, Brenda, na época com 3 anos e meio, apontou a fotografia de uma menina negra e disse que "era feia".
- Por que feia?, perguntou a professora.
- Porque ela é igual a mim, respondeu a garota.
É por isso que o combate a todas as formas de preconceito deve ser prioridade desde os primeiros anos da Educação Infantil. "O sucesso escolar está ligado a uma boa formação. E esse sucesso depende muito da relação que a criança tem com a escola", destaca o sociólogo Valter Roberto Silvério, do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
No Brasil, as estatísticas refletem essa realidade: os negros são 45,5% da população, mas têm nível de escolaridade menor que os brancos. Silvério e outros pesquisadores que estudam as relações raciais na escola afirmam que o tratamento diferenciado dentro da sala de aula é um dos fatores que contribuem para o baixo rendimento das crianças negras.
Para começar, é preciso deixar os clichês de lado. Nada de acreditar que todos somos iguais - e ponto. Antes de mais nada, é essencial reconhecer que existem as diferenças. "Infelizmente, muitas escolas reproduzem a discriminação racial e muitos professores não apresentam propostas pedagógicas para se contrapor a essas situações", opina a pedagoga Lucimar Rosa Dias, especialista em Educação e relações raciais e membro da Comissão Técnica Nacional de Diversidade para Assuntos Relacionados a Educação dos Afro-Brasileiros, do Ministério da Educação. Em seu doutorado, Lucimar está investigando como as relações raciais são abordadas em creches brasileiras. Uma de suas conclusões é a de que o combate à discriminação na sala de aula beneficia todas as crianças. "O acesso a um ambiente que estimula o respeito à diversidade ajuda a formar jovens mais respeitadores, mais educados e mais preocupados com a coletividade."
Projeto Griô: contação de histórias africanas
A professora Rita, citada no início desta reportagem, acredita piamente nisso. Ela criou o projeto Griô, palavra de origem africana que significa "contador de histórias", para valorizar a identidade racial das crianças. Em sua escola, 89 dos 150 matriculados são afro-descendentes, mas poucos conheciam a cultura de seus antepassados. De início, ela promoveu rodas de conversa, localizou a África num globo terrestre e apresentou Vovô Zezinho e Maria Chiquinha, um casal de bonecos pretos que virou mascote da turma. Rita escolheu sete contos que exploram a africanidade e associou cada um deles a uma atividade diferente.
Para o primeiro conto, Aguemon (Carolina Cunha, 54 págs., Ed. Martins Fontes), que trata do nascimento da Terra, ela trouxe para a escola sementes de várias texturas, cores e tamanhos.
Na segunda história, Xangô e o Trovão (Reginaldo Prandi, 64 págs., Ed. Cia. das Letrinhas), cada criança identificou as partes do corpo e as diferenças entre meninos e meninas.
Duas histórias do livro Irê Ayô: Mitos Afro-brasileiros, (Vanda Machado e Carlos Petrovich, 123 págs., EDUFBA) deram origem às seguintes atividades: após a fartura de A Terra Mexida e Plantada Dá Frutos, todos plantaram sementes no jardim para aprender que também as pessoas precisam de respeito e cuidados, e a história Ossain, o Protetor das Folhas, inspirou uma tarde de chás, produzidos com ervas da flora brasileira, com a participação dos pais.
Os familiares também foram mobilizados para ajudar na produção de panôs (um tipo de artesanato de origem africana em que vários retalhos, de diferentes tamanhos e cores, são reunidos para representar a diversidade) inspirados por Bruna e a Galinha d'Angola (Gercilga de Almeida, 24 págs., Ed. Pallas).
E funcionárias da escola ajudaram a fazer birotes nos cabelos das meninas depois que a professora leu para as crianças o livro As Tranças de Bintou (Sylviane Diouf, 32 págs,. Ed. Cosac Naify). Brenda, a que se achava feia, logo percebeu que existem vários padrões de beleza. O projeto exigiu muita dedicação de Rita, mas lhe rendeu o primeiro lugar no prêmio Educar para a Igualdade Social, promovido pelo Centro de Estudos das Relações do Trabalho e da Desigualdade em 2006. "Hoje, os pequenos se sentem mais seguros e respeitam mais os funcionários da casa", afirma a professora.
Toque no cabelo e a representação das sensações com massinha
Em Campinas, interior de São Paulo, a professora Elaine Cassan também usou histórias para dar uma abordagem pedagógica ao tema etnia na EMEI Iniciação Pezinhos Descalços. Tudo começou com uma brincadeira sutil: deixar as crianças experimentarem o toque, nos cabelos umas das outras, para perceber que nem todo mundo é igual.
Em seguida, elas representaram essas sensações em bonecos de massinha. "Tanto o toque como a massa de modelar têm o objetivo de experimentar um contato prazeroso com o outro", explica Elaine. No ano passado, a professora Renata Esmi Laureano deu continuidade ao trabalho, que incluiu a produção de um "álbum da diversidade", com desenhos e colagens de fotos e gravuras com pessoas de todos os jeitos e gêneros. Os pais também participaram, resgatando fotografias de antepassados para que as crianças pudessem fazer uma árvore genealógica, descobrindo sua identidade familiar. Tudo para valorizar a individualidade e a história de cada um.
Contos e filmes, como o desenho animado Kiriku e a Feiticeira, também foram mostrados para a garotada conhecer histórias de origem africana. As duas professoras compartilharam informações e reflexões com os colegas e promoveram até uma sessão só com intervalos de um canal de TV para as crianças mais velhas observarem os tipos físicos que aparecem nas propagandas. "Assim, pudemos reconhecer com eles as diferenças e abordar a questão do preconceito de forma crítica", lembra Renata.
Glossário
Antes de propor ações positivas para a questão racial, é importante entender o significado exato de três conceitos fundamentais para trabalhar corretamente o tema.
Preconceito
Alguém age com preconceito quando faz um prejulgamento ou tem uma ideia preconcebida, sem razão objetiva, a respeito de um indivíduo ou de um povo. É preconceituoso quem diz que "os negros (ou os índios) não gostam de estudar".
Discriminação
A discriminação ocorre quando os preconceitos são exteriorizados em atitudes ou ações que violam os direitos das pessoas com base em critérios injustos (que podem ser não só de raça mas de sexo, idade e religião, entre outros).
Racismo
O racismo é definido como "o comportamento hostil e de menosprezo em relação a pessoas cujas características intelectuais ou morais são consideradas inferiores por outros que se consideram superiores". Pesquisadores que estudam o assunto acreditam que o conceito atual de racismo surgiu no século 18 para justificar a dominação do branco europeu sobre os povos de outros continentes.
Referência:
MENEZES, Déborah. Como trabalhar as relações raciais na pré-escola https://novaescola.org.br/conteudo/130/como-trabalhar-as-relacoes-raciais-na-pre-escola> Acesso em: 17 de março de 2019.